Alguém do passado, de Riany Botelho

1. Dr. Saulo era um médico famoso, amigo do meu pai. Era discreto sobre sua vida pessoal e preferia falar sobre cultura e arte. Fingia que não ligava para o próprio prestígio e mencionava meio de passagem entrevistas que daria na tv. Sua semelhança com Steve Martin era meio perturbadora em um homem tão sério e composto. Quando se incomodava ou discordava de algo fazia uns esgares de boca que lhe davam um ar de nojo. Era um gesto muito rápido, mas depois que a gente notava não conseguia mais deixar de ver.

2. Seu Evangelista é um faz-tudo, magrinho, ágil, risonho, bom no seu serviço. Gosta de contar piadas e de assistir ao Sr. Brasil na tv. Está se aposentando e vai se mudar com a mulher para um sítio na Bahia. Quando ri, levanta as sobrancelhas e faz gestos rítmicos com as mãos, parecendo que pede que os outros riam com ele.

3. Não tive coragem de perguntar o que tinha acontecido com ele. Ouvi dizer que foi um acidente de carro e que ele teve perda de massa encefálica. Não podia mais ser médico. Acho que se a sua família fosse tão ciosa da própria imagem como ele era nunca o teriam deixado trabalhar em um emprego subalterno. Talvez fosse uma família amorosa que deixou que ele fosse produtivo do jeito que podia e queria. Talvez fosse uma família que aos poucos foi se desvencilhando dele. Parece que sua mulher atual é bem mais simples que a anterior.

O perfeccionismo de médico ainda se nota nos cuidados com o corpo, exercícios, dieta. No seu trabalho também, é um ótimo faz-tudo. Pena que está se aposentando. Vai mudar com a mulher para um sítio na Bahia, onde ninguém o conhece.

Parece ser feliz e gostar que os outros também sejam. Não tem mais esgares de boca. Seu rosto fica bem relaxado quando não está rindo. E não parece mais Steve Martin. Lembra um pouco, mais pelo gestuário, Didi Mocó.


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Texto de Riany Botelho

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