Voz própria - Entrevista com Mario Levrero
Fonte: http://brecha.com.uy/ultimas-conversaciones-con-mario-levrero/
Em setembro de 2003 Mario Levrero se propôs a escrever um livro que recebeu o nome provisório e humorístico de "Guia de Escrita para Idiotas". Este guia (que não ficou pronto) reuniria os conselhos utilizados em sua oficina literária virtual, que ele orientava junto a Gabriela Onetto. Como sua sócia morava no México, o escritor convidou um aluno de Montevideu, Cristian Arán, para gravar suas primeiras reflexões, que seriam o ponto de partida do projeto. A primeira entrevista aconteceu em 29 de janeiro de 2004. A segunda entrevista em 19 de fevereiro. Mario Levrero faleceu em 30 de agosto de 2004. A transcrição da entrevista foi realizada por Pablo Silva Olazabal. A primeira parte foi publicada nos sites The Cult e Brecha.
- Por que você decidiu começar uma oficina, e estimular os outros à criação?
Tive a ideia em Buenos Aires, quando parei de trabalhar na redação de revistas. Precisava ganhar a vida. Me associei a uma amiga que era professora de literatura (Cristina Siscar) e tinha titulação para convocar as pessoas com certa seriedade. Preparamos uns exercícios, tipo oficina comum, fizemos um pouco de publicidade, conseguimos 4 ou 5 alunos e começamos a trabalhar. Com o tempo fui percebendo que os exercícios tinham pouco significado. Não tocavam nas coisas essenciais.
- Como eram esses exercícios tipo "oficina comum"?
Jogos a partir de palavras: completar, continuar, imaginar, mas sempre em função da palavra e não do que havia por trás dela, que é a matéria prima da literatura. Então tive a ideia de intercalar outros exercícios, baseados em experiências, como histórias que nasciam a partir de sonhos, e vi que os resultados eram melhores. Os textos eram mais ricos e coloridos porque as tarefas mobilizavam mais. Passei a eliminar os exercícios ligados à palavra enquanto experimentava os outros. Isso não aconteceu de repente, foi um processo.
- O que conseguimos, escrevendo a partir de um sonho?
Os sonhos têm imaginação, são compostos de imagens, e são um dos poucos vínculos que temos com o inconsciente, que é o depósito da experiência pessoal mais profunda e a matéria prima essencial da arte, seja literatura ou qualquer outra forma artística.
- A arte é...
A arte é hipnose. É inventar uma espécie de máquina de hipnotizar outra pessoa para transmitir a ela vivências ou experiências anímicas que não se traduzem em eventos visíveis. Você escreve uma história e essa história é como uma armadilha que mantém o interesse do leitor, para que nesse estado ele vá baixando os níveis críticos de sua consciência, e comece a aceitar e receber as coisas que estão implícitas no texto.
- Fazer exercícios a partir da palavra dificulta a conexão com o mundo interior?
Fica reduzido a um jogo intelectual, e você acaba trabalhando com as ferramentas do ego. Você perde as ferramentas do restante do ser, que são muito mais contundentes.
- Quando você recebe o texto de alguém que vai à sua oficina, como você percebe se ele navega ou não no inconsciente? Tem algo a ver com psicanálise?
Não, tudo é intuitivo (longo silêncio). Não sei, você percebe quando uma pessoa está falando com sua voz mais verdadeira, mais profunda. Isso dá estilo à pessoa. O aluno que vem à oficina pela primeira vez, geralmente chega com a ideia de escrever como se "deve" escrever. Todo estilo pessoal está apagado, eliminado, e o que você recebe do aluno são penosos esforços para se meter num estilo convencional que ele acha que é o melhor, porque viu em certas fontes em que passou a confiar. Em algum momento de sua vida essas fontes confiáveis disseram a ele como se deve escrever. Tudo isso tem que ser destruído. Precisamos conseguir que o aluno se expresse com sua própria voz, seu próprio estilo.
- Então você faz uma leitura da estrutura da história, das condicionantes psíquicas de cada um...
Não, não. Nada disso.
- Você não enxerga, por exemplo, como se fossem orientações de uma terapia?
Não, não tem nada a ver. Às vezes a oficina tem efeitos terapêuticos, mas são efeitos secundários que não buscamos. O que busco é ouvir a voz verdadeira do aluno. Quando escuto que está se expressando com o estilo que combina com ele, que tem a ver com sua maneira de ser, com sua forma de pensar, de sentir, e que não pareça com nada que eu já tenha ouvido, então é isso. Não me importa o conteúdo. A pessoa pode ter um conteúdo marxista de Karl Marx ou Groucho Marx, não tem a menor importância. Somos únicos e o que me interessa é que ela seja ela mesma.
- E como você convence a pessoa de que aquela é sua voz? Digo porque às vezes, quando lêem na oficina, não parecem notar a diferença.
Ninguém percebe. Nem os que escutam. Tanto quando lemos ou escutamos, prestamos muita atenção no conteúdo. Julgamos um texto pelo conteúdo. Às vezes até pelos sons, pela combinação das palavras. Quando alguém diz "gostei muito dessa parte" quer dizer que o texto em geral não está bom, por isso se destaca o que ficou melhor por acaso, e então se resgata "ao menos" isso. As pessoas hoje estão muito fechadas nos argumentos, às vezes nas combinações de palavras, incluindo as engenhosas, que não têm nada a ver com literatura. A única coisa importante na literatura é o estilo. Quando conseguir isso você pode fazer o que quiser. O que você coloque no papel vai se ajustar ao que está expressando. Pode ser desagradável, e nada edificante, mas isso é você, um ser único. O estilo pessoal é impossível de alcançar com técnicas, não há técnica que consiga isso.
- É a partir do estilo pessoal que se chega à hipnose da arte?
De certo modo sim, porque... esclareço que a ideia da hipnose da arte não é minha, tirei de um livro, Psicanálise da Arte, de Charles Baudouin. Esse autor até vai mais além, diz por exemplo que quando você olha um quadro as formas obrigam os olhos a fazer certo caminho pre-estabelecido. Os olhos se movem e seguem uma série de linhas e cores, e sem perceber isso começa a te provocar um pequeno transe. Nesse transe você começa a receber algo que não está no quadro mas na alma do artista. Ou seja, a hipnose permite transmitir o conteúdo de uma alma a outra, para além do tema do quadro.
Exercício para encontrar a própria voz:
ENTREVISTA DO AUTOR CONSIGO MESMO
* Adaptação do exercício de entrevista com personagem, da escritora Gloria Anzaldúa (praticado na oficina Blueprint Your Book, de Minal Hajratwala)
- O que você quer quando escreve?
- O que te impede de fazer isso?
- O que te frustra?
- Como você lida com isso?
- Qual sua maior força?
- O que você precisa descobrir?
- Por que você acha que isso está acontecendo?
- Por que está acontecendo com você?
- Você acha que isso acontece com outras pessoas?
- O que te causa mais problemas?
- Você tem medo de não conseguir o que quer?
- Então o que você quer realmente?
- O que vai acontecer?
- Qual a causa disso tudo, afinal?
- O que você quer que aconteça nos próximos 10 minutos? Nos próximos 10 dias?
- Quem mais, ou o que mais, está na sua cabeça?
- Do que você tem medo agora?
- Qual seu motivo para fazer isso?
- O que os outros querem de você?
- O que você quer que os outros queiram de você?
- Você tem medo de não conseguir o que quer?
- O que você acha que vai levar disso?
- Então o que você quer realmente?
Em setembro de 2003 Mario Levrero se propôs a escrever um livro que recebeu o nome provisório e humorístico de "Guia de Escrita para Idiotas". Este guia (que não ficou pronto) reuniria os conselhos utilizados em sua oficina literária virtual, que ele orientava junto a Gabriela Onetto. Como sua sócia morava no México, o escritor convidou um aluno de Montevideu, Cristian Arán, para gravar suas primeiras reflexões, que seriam o ponto de partida do projeto. A primeira entrevista aconteceu em 29 de janeiro de 2004. A segunda entrevista em 19 de fevereiro. Mario Levrero faleceu em 30 de agosto de 2004. A transcrição da entrevista foi realizada por Pablo Silva Olazabal. A primeira parte foi publicada nos sites The Cult e Brecha.
- Por que você decidiu começar uma oficina, e estimular os outros à criação?
Tive a ideia em Buenos Aires, quando parei de trabalhar na redação de revistas. Precisava ganhar a vida. Me associei a uma amiga que era professora de literatura (Cristina Siscar) e tinha titulação para convocar as pessoas com certa seriedade. Preparamos uns exercícios, tipo oficina comum, fizemos um pouco de publicidade, conseguimos 4 ou 5 alunos e começamos a trabalhar. Com o tempo fui percebendo que os exercícios tinham pouco significado. Não tocavam nas coisas essenciais.
- Como eram esses exercícios tipo "oficina comum"?
Jogos a partir de palavras: completar, continuar, imaginar, mas sempre em função da palavra e não do que havia por trás dela, que é a matéria prima da literatura. Então tive a ideia de intercalar outros exercícios, baseados em experiências, como histórias que nasciam a partir de sonhos, e vi que os resultados eram melhores. Os textos eram mais ricos e coloridos porque as tarefas mobilizavam mais. Passei a eliminar os exercícios ligados à palavra enquanto experimentava os outros. Isso não aconteceu de repente, foi um processo.
- O que conseguimos, escrevendo a partir de um sonho?
Os sonhos têm imaginação, são compostos de imagens, e são um dos poucos vínculos que temos com o inconsciente, que é o depósito da experiência pessoal mais profunda e a matéria prima essencial da arte, seja literatura ou qualquer outra forma artística.
- A arte é...
A arte é hipnose. É inventar uma espécie de máquina de hipnotizar outra pessoa para transmitir a ela vivências ou experiências anímicas que não se traduzem em eventos visíveis. Você escreve uma história e essa história é como uma armadilha que mantém o interesse do leitor, para que nesse estado ele vá baixando os níveis críticos de sua consciência, e comece a aceitar e receber as coisas que estão implícitas no texto.
- Fazer exercícios a partir da palavra dificulta a conexão com o mundo interior?
Fica reduzido a um jogo intelectual, e você acaba trabalhando com as ferramentas do ego. Você perde as ferramentas do restante do ser, que são muito mais contundentes.
- Quando você recebe o texto de alguém que vai à sua oficina, como você percebe se ele navega ou não no inconsciente? Tem algo a ver com psicanálise?
Não, tudo é intuitivo (longo silêncio). Não sei, você percebe quando uma pessoa está falando com sua voz mais verdadeira, mais profunda. Isso dá estilo à pessoa. O aluno que vem à oficina pela primeira vez, geralmente chega com a ideia de escrever como se "deve" escrever. Todo estilo pessoal está apagado, eliminado, e o que você recebe do aluno são penosos esforços para se meter num estilo convencional que ele acha que é o melhor, porque viu em certas fontes em que passou a confiar. Em algum momento de sua vida essas fontes confiáveis disseram a ele como se deve escrever. Tudo isso tem que ser destruído. Precisamos conseguir que o aluno se expresse com sua própria voz, seu próprio estilo.
- Então você faz uma leitura da estrutura da história, das condicionantes psíquicas de cada um...
Não, não. Nada disso.
- Você não enxerga, por exemplo, como se fossem orientações de uma terapia?
Não, não tem nada a ver. Às vezes a oficina tem efeitos terapêuticos, mas são efeitos secundários que não buscamos. O que busco é ouvir a voz verdadeira do aluno. Quando escuto que está se expressando com o estilo que combina com ele, que tem a ver com sua maneira de ser, com sua forma de pensar, de sentir, e que não pareça com nada que eu já tenha ouvido, então é isso. Não me importa o conteúdo. A pessoa pode ter um conteúdo marxista de Karl Marx ou Groucho Marx, não tem a menor importância. Somos únicos e o que me interessa é que ela seja ela mesma.
- E como você convence a pessoa de que aquela é sua voz? Digo porque às vezes, quando lêem na oficina, não parecem notar a diferença.
Ninguém percebe. Nem os que escutam. Tanto quando lemos ou escutamos, prestamos muita atenção no conteúdo. Julgamos um texto pelo conteúdo. Às vezes até pelos sons, pela combinação das palavras. Quando alguém diz "gostei muito dessa parte" quer dizer que o texto em geral não está bom, por isso se destaca o que ficou melhor por acaso, e então se resgata "ao menos" isso. As pessoas hoje estão muito fechadas nos argumentos, às vezes nas combinações de palavras, incluindo as engenhosas, que não têm nada a ver com literatura. A única coisa importante na literatura é o estilo. Quando conseguir isso você pode fazer o que quiser. O que você coloque no papel vai se ajustar ao que está expressando. Pode ser desagradável, e nada edificante, mas isso é você, um ser único. O estilo pessoal é impossível de alcançar com técnicas, não há técnica que consiga isso.
- É a partir do estilo pessoal que se chega à hipnose da arte?
De certo modo sim, porque... esclareço que a ideia da hipnose da arte não é minha, tirei de um livro, Psicanálise da Arte, de Charles Baudouin. Esse autor até vai mais além, diz por exemplo que quando você olha um quadro as formas obrigam os olhos a fazer certo caminho pre-estabelecido. Os olhos se movem e seguem uma série de linhas e cores, e sem perceber isso começa a te provocar um pequeno transe. Nesse transe você começa a receber algo que não está no quadro mas na alma do artista. Ou seja, a hipnose permite transmitir o conteúdo de uma alma a outra, para além do tema do quadro.
Exercício para encontrar a própria voz:
ENTREVISTA DO AUTOR CONSIGO MESMO
* Adaptação do exercício de entrevista com personagem, da escritora Gloria Anzaldúa (praticado na oficina Blueprint Your Book, de Minal Hajratwala)
- O que você quer quando escreve?
- O que te impede de fazer isso?
- O que te frustra?
- Como você lida com isso?
- Qual sua maior força?
- O que você precisa descobrir?
- Por que você acha que isso está acontecendo?
- Por que está acontecendo com você?
- Você acha que isso acontece com outras pessoas?
- O que te causa mais problemas?
- Você tem medo de não conseguir o que quer?
- Então o que você quer realmente?
- O que vai acontecer?
- Qual a causa disso tudo, afinal?
- O que você quer que aconteça nos próximos 10 minutos? Nos próximos 10 dias?
- Quem mais, ou o que mais, está na sua cabeça?
- Do que você tem medo agora?
- Qual seu motivo para fazer isso?
- O que os outros querem de você?
- O que você quer que os outros queiram de você?
- Você tem medo de não conseguir o que quer?
- O que você acha que vai levar disso?
- Então o que você quer realmente?
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