Tênis do Leo

Conto de André Luiz Ferrer Domenciano

Sentou-se e fechou os olhos. Ambas as mão no rosto e os cotovelos na mesa. Queria recobrar a calma antes das sete e trinta quando os alunos chegavam trazidos pelos pais e ela os recebia. Por isso, apressou-se em subir a escada naquela manhã chuvosa. Um dia que começara tumultuado no ponto de ônibus desprotegido e, depois, dentro do coletivo lotado. Um dia confuso porque, também, indispusera-se com a diretora debaixo do guarda-chuva enquanto fazia a gentileza de protegê-la até que alcançassem a marquise da escola.

“Estamos conversadas?”, tinha dito a diretora. “Nada de enviar esses bilhetes sem o meu conhecimento.”

A mesa da professora ficava diante da única janela da sala que olhava para fora da escola. Quando abriu os olhos, ela descobriu que a chuva amainara. O silêncio era quebrado pelo zinco sendo atingido lá fora. Uma torneira pingava do outro lado do vidro. Aqueles vinte, vinte e cinco, tinta minutos que antecediam a chegada dos alunos pareciam os mais silenciosos por causa da expectativa. Sempre traziam à mente da professora um famoso adágio: “A hora mais escura do dia é a que vem antes de o sol nascer.”

De repente, a luz de um poste próximo se apagou por causa do aumento da claridade natural. Há seis meses, ela trabalhava como professora do jardim de infância. Logo no primeiro dia, descobriu a necessidade de ter o seu refúgio naquele canto da sala. Uma mesa limpa diante de uma janela que não olhasse para um corredor ou para o pátio.

“Seja bem-vinda querida”, tinha dito a diretora no segundo dia. “Vejo que fez mudanças na sala!”

“Tem algum problema?”

“Nenhum, desde que você não fique distante dos pequenos. Acho que a mesa ficava num lugar mais estratégico. Mas pode deixar. Eu mesma não fico sem uma mudança. Como você é nova, não reparou! Durante as férias, eu tirei o meu bigode chinês. Aqui.”

A mulher tinha mostrado a região imediatamente acima dos lábios. Quando sorriu, os olhos franziram. A professora novata logo reparou que a diretora deixara os pés de galinha para as próximas férias escolares. 

Agora, faltavam cinco minutos e a chuva cessara de vez. A professora notou que um grupo de pássaros empoleirava-se num fio elétrico. Achava engraçado o tremor dos bichinhos antes do voo. Andorinhas e pardais se revezavam, também, sobre o muro da escola. Convulsos, antes do voo, devidamente azeitados, enquanto ajustavam os seus delicados mecanismos.

“Professora Helena”, disse a diretora. Estava na porta da sala e a professora sequer ouvira os passos dela na escada. “Uma palavrinha. Sobre o Pedro.”

“Senhora?”

“O pai dele provavelmente tocará no assunto. Você preste atenção nisso. Ele vai tirar satisfação. Estamos conversadas?”

O menino costumava ser imprevisível. Não era maldoso, mas aprontava com os amiguinhos quando tudo parecia sob controle. Sem mais nem menos, Pedro empurrava Ana. Justo quando brincavam tão pacificamente! Durante a hora do soninho, dobrava o lençol, entrava debaixo do colchão, projetava o Dênis no ar e saía na outra extremidade. Dênis chorava. Helena fazia todos dormir, menos Pedro, que calçava os tênis do Leo, que eram do Ben 10, e começava a zanzar pela sala. Às vezes, calçar os tênis do Leo era a primeira coisa que fazia na hora do soninho. Tudo se dava, conforme no dia anterior, só que de trás para frente. 

“Sim senhora.”

Sem o bigode chinês, a diretora sorriu.

“Obrigada querida.”

Quando o sinal tocou, Helena descia a escada. O zelador a esperou com as chaves na mão. As outras professoras conversavam, impacientes, perto da porta. Lá fora, o bulício. Os primeiros da fila eram Pedro e o seu pai.

“Tenha um bom dia, filho”, disse o homem curvado para beijar o pequeno. Depois, ele ficou ereto. Ajeitou a franja na testa.

“Bom dia Pedro”, fez Helena.

“Eu preciso de uma palavrinha, professora”, disse o homem. “É rápido.”

Helena pediu ajuda a uma das colegas. Os dois entraram no saguão. Pedro ficou tranquilo no seu lugar dentro da fila que se formava.

“É sobre o bilhete”, fez o homem, que precisou ajeitar os fios de cabelo novamente. “O Pedro é tranquilo. Ele não é agressivo. Tem um irmão menor e vários primos. Nunca agrediu ninguém. Por isso, em minha opinião, aquele bilhete é um exagero. Sabe, professora, fico imaginando como a senhora repreende os seus alunos. Disse isso para a sua chefe, a diretora. Nessa idade! Ser repreendido!”

“O senhor nunca repreende o Pedro?”

“Claro que sim”, disse o pai, os dedos nos cabelos por causa do movimento brusco da cabeça. “Ontem, mesmo, tivemos uma conversa. O único probleminha do meu filho é querer tudo o que vê. Às vezes, ele vê um brinquedo e fica obcecado. Nem sempre devemos atender. Somos os pais. Mas, aqui, na escola é diferente.”

“Diferente?”

“Imagina ser repreendido nessa idade dentro da escola! Traumatiza. Vai que a criança relaciona a bronca ao ambiente escolar. A escola não pode ser relacionada à repressão nessa idade! É por isso que tem jovens nas séries mais adiantadas, no ensino médio, até na faculdade, que não gostam de estudar.”

“O senhor acha?”

“Bem, eu e a diretora já conversamos. É a minha opinião”, fez o homem. “Dona Helena, ficou claro?”

“Estamos conversados.”

“Tenha um bom dia!”

Naquela manhã, a professora trabalhou como se a tivessem colocado num grande saco de papel celofane amarelo. Na hora da soneca, Pedro se deitou com os outros e tudo parecia correr bem. Antes de se meter ─ ainda que por alguns minutos ─ no seu refúgio, ficou em pé, observando a turma deitada nos colchões. Pedro cochilava. De vez em quando, encolhia os pés, passava um dedinho no outro ─ garantias? Nenhuma. O negócio todo podia começar e se desenrolar de trás para frente. 

Sentada à mesa, Helena observou o exterior. Respirou fundo. Pegou a sua bolsa e retirou um livro que andava lendo: “A maçã no escuro”. De repente, ouviu um gemido. Era o Dênis, que voo e aterrissou. Do outro lado do colchão, apareceu a cabeça de Pedro, que encontrou o pé certeiro de Flávia.

“Deus amado!”, disse Helena. Num salto, a mão direita no menino, a outra mão nos ombros da Flávia. À maneira de um malabarista, a professora estancou o choro e a gritaria. Dênis colocou o polegar na boca. Flávia se deitou. Os outros mudaram de posição. 

“Venha, Pedro. Vemos olhar os passarinhos”, disse a professora. Carregava o menino no colo. “Hoje cedo, a tia viu centenas de passarinhos num fio.”

A criança esperneou e ameaçou retomar o choro.

“Calma. Veja!”

Pela janela, via-se a claridade primaveril de setembro. Um absurdo dizer que chovera há poucas horas. O sol das treze e vinte e cinco fazia ferver o muro da escola. Nenhum pássaro ousava pousar na canícula. Todos livres àquela altura escaldante; livres para buscar lugares mais frescos e ensombrados.

“Eu não quero!”, disse Pedro.

“Então, vamos ver algumas fotos que a tia tirou ontem. Foi domingo. Passeei no parque e tirei várias fotos. Veja!”

O menino chupou o nariz, abriu bem os olhos e limpou o rosto. Algo, finalmente, parecia surtir efeito. Ele aproximou o rosto da tela do celular.

“Tia Helena”, disse.

“O que foi?”

“Tira uma foto do tênis do Leo? Quero mostrar a foto para o meu pai. Daí, ele compra um igualzinho para mim.”

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