Oficinas de Roteiro

* Artigo publicado na revista do Sesc-SP em fevereiro (ou março) de 2011

Alguns anos atrás, tive aulas com o editor Jiro Takahashi, num curso sobre “Edição de livros populares”. Um dos temas discutidos era o jovem escritor – ou o aspirante a escritor, ainda que não fosse jovem. Lembro de um comentário que me pareceu simples e verdadeiro. “Todo mundo quer ser artista”, ele disse. “Mas para ser pintor, a pessoa precisa ter talento manual. Para ser músico, precisa tocar um instrumento ou ter uma boa voz. Para ser ator, precisa coragem de se expor diante da platéia.” Então ele sorria de um jeito especial, com seu humor tímido e generoso: “Já, para ser escritor... bem, todo mundo sabe escrever. Parece tão fácil. Por isso que as oficinas de criação literária estão sempre lotadas de alunos.”

Há coisas que só um professor percebe, pois não aparecem na imprensa, nas entrevistas dos profissionais, ou nas estatísticas do mercado de trabalho. O professor sabe o degrau enorme que existe entre o sonho de seus alunos e sua possibilidade de realização. Sou professora de roteiro para cinema e televisão há mais de dez anos. Já trabalhei em faculdades, dei oficinas gratuitas na preferia, oficinas famosas ligadas a festivais ou intelectuais conhecidos, e aulas para a classe média em escolas particulares. Devo ter quase mil ex-alunos, de diversas origens, que passaram por minhas aulas em diferentes fases de suas carreiras.

Dois de meus ex-alunos ficaram famosos (não necessariamente por mérito meu). Muitas dezenas se tornaram bons profissionais (ou continuaram sendo), respeitados em sua área mas desconhecidos do grande público. Mas imagino o que teria acontecido com aquelas outras centenas... pessoas de que nunca mais ouvi falar.

As pessoas procuram oficinas de roteiro para cinema e TV por vários motivos. Alguns buscam apenas uma distração, um hobby, umas horas agradáveis ouvindo curiosidades sobre a profissão cuja fama é mais glamurosa que a prática cotidiana. Esse tipo de aluno geralmente nem realiza as tarefas propostas pelo professor. Eles querem apenas ouvir: e quanto maior o charme do professor, quanto mais picantes as histórias que contar, maior será sua satisfação com o curso.

Mas, além dos turistas, existem os alunos que gostariam realmente de trabalhar na área. Alguns estão quase lá, em profissões parecidas: jornalistas, publicitários, etc. Outros sentem um desejo que parece além de seus recursos – donas de casa, jovens de baixa renda, oficiais de justiça aposentados... querem acreditar na possibilidade, mas o bom senso insiste em repetir que o sucesso seria improvável. A oficina é uma maneira rápida e barata de sondar o terreno, para ambos os casos: não exige muita dedicação, custa pouco e às vezes é gratuita. Em algumas semanas, o aluno poderá entender melhor o problema, em seu caso específico – qual a distância que deverá percorrer para chegar ao pote de ouro: a profissão ideal, em que somos criativos e influenciamos o mundo, sem sair da cadeira de nosso escritório.

Um bom professor desfaz a miragem na primeira aula. Em primeiro lugar, um roteirista profissional é raramente criativo segundo o senso comum – ou seja, a criação espontânea, a expressão pessoal e original. O roteirista profissional é criativo conforme a encomenda: deve canalizar suas idéias para o projeto, de cinema ou TV, para o qual foi contratado. São raras as situações em que um produtor procura o roteirista e diz: “Quero fazer um filme (ou programa), vou buscar o dinheiro necessário para isso, mas não tenho uma idéia: preciso que VOCÊ, criador original, me diga o que filmar.” Já ouvi ou participei de situações parcialmente parecidas – ou seja, em que o briefing (encomenda original) era mínimo. Mas um caso sem NENHUM briefing, nunca vi. Inspirada pela sabedoria camponesa de minha avó, costumo dizer que as pessoas te pagam pra fazer o que ELAS querem. Ninguém te pagar pra fazer o que VOCÊ quer.

Cada um julga a qualidade de um professor segundo seus próprios critérios. Para mim, o principal é a honestidade. Talvez alguns alunos não percebam, mas o professor que elogia demais a profissão de roteirista, e exalta demais as oportunidades de trabalho, está no fundo vendendo otimismo, e, como bom vendedor, exagera as qualidades do para conseguir mais clientes.

Um professor não deve deprimir o aluno, isso é claro. Ser roteirista pode ser interessante, e pode até render um bom dinheiro. As oportunidades existem: o mercado audiovisual no Brasil tem uma boa parcela de produção própria (principalmente na TV), e todo ramo de negócios renova regularmente suas equipes. Mas ninguém deve iludir os outros. E iludir, no caso de oficinas de roteiro, significa vender a idéia de que um curso de dois meses vai transformar o aluno num roteirista.

Escrever roteiro é um trabalho. Como todo trabalho, para se trabalhar é preciso de um chefe (quem manda no dinheiro manda nas idéias). Esse chefe é às vezes distante e coletivo, como nos concursos culturais promovidos por entidades públicas e privadas. O chefe pode também ser muito próximo e até delirante (por exemplo, um milionário que gostaria de fazer cinema mas não sabe como). Muitos aspirantes acreditam que o chefe pode ser você mesmo – grande mito difundido a partir de exemplos do mercado americano, em que é possível vender um roteiro original para empresas produtoras. Mas, assim como a neve no Natal, tal fenômeno encantador não ocorre no Brasil. Aqui, se você é uma galinha dos ovos de ouro, as empresas vão comprar a galinha e jogar fora os ovos. Depois vão pedir à galinha que solte de suas entranhas vários objetos dourados – chaveiros de ouro, porta-retratos de ouro, abridores de lata de ouro.

Uma oficina de roteiro pode mostrar ao aluno os primeiros passos das várias missões do role-playing game de se tornar um roteirista remunerado. A primeira, mais óbvia e mais difícil, é aprender a escrever bem. Mas existem outras: conhecer o mercado audiovisual; estabelecer uma rede de relações profissionais; entender sobre preços e legislação, para negociar bem. Uma oficina é apenas isso: um começo. Talvez não seja o único modo de começar – mas, dependendo do professor, pode ser um ótimo impulso para os que têm persistência e talento.

Comentários

  1. INT. SALA DO KITNET VAGABUNDO - NOITE

    Ele lê um texto em um site no PC. A autora se parece com uma MAFALDA ADULTA.
    Uma xícara de chá fumegante está na mesa, junto a um cinzeiro abandonado com bitucas velhas e dezenas de papéis rascunhados.
    No SOM toca algo desgraçadamente triste e pesado. Ele sente dores pelo corpo e se automassageia na altura dos ombros.

    ELE (V.O.)
    Puta merda, acho que escolhi o sonho errado.

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